sábado, 7 de julho de 2012

RURAL E URBANO EM TERRAS AFRICANAS

 
Minha monografia de graduação tratou sobre o desafio do contexto urbano para a Igreja, no contraste com o contexto rural. De fato, a experiência do SolAfrica 2012 deixa muito clara essa diferença. Ao comparar as estruturas dos cursos em Cambine, zona rural central de Moçambique, e Luanda, capital de Angola, fica evidenciado como o cosmos se organiza de modos diferentes.

Certamente que os países têm diferenças, tanto na forma de se organizar politicamente quanto na estrutura econômica, mas o que fica mais evidente são as diferenças nas áreas urbana e rural. Muita coisa que aqui em Luanda é diferente de Cambine seria igual se estívessemos numa área rural do interior do país. Assim, não há termos de comparação, mas de verificar as diferenças, e que não é uma impressão subjetiva, pois pelo menos em conversa com a Blanches houve pleno acordo quanto a isso.

Um dos aspectos que mais salta aos nossos olhos é quanto o tempo: em Cambine os dias eram lentos, nosso ritmo era mais tranquilo e meditativo, quase monástico, já que todos ficaram hospedados nas dependências da missão, em clima de retiro. O ambiente reflexivo saltava aos olhos, e nós não sentíamos qualquer pressão no cumprimento do tempo, pois as atividades se sucediam naturalmente.
 Já em Luanda o trânsito (muito pesado) aliado ao intenso programa que temos que cumprir (visto que os alunos precisam retornar para suas casas) fazia com que os dias fossem tensos, cansativos, mas passavam com velocidade.

Outra diferença está no uso da língua. Quando dizemos que português é usado eventualmente, nos referimos apenas ao ambiente rural. Na cidade, especialmente em Luanda, a nova geração não sabe mais falar as línguas tradicionais, posto que suas mamas não as ensinaram (foi o que me disseram). Já o ambiente rural é mais poliglota, pelo menos em relação às línguas tradicionais. Na cidade privilegia-se aprender as línguas internacionais, tendo em vista possibilidades de estudos e viagens. Na África há diversos países em que a língua comum é o inglês, como Zimbabwe, África do Sul e Namíbia.

Um terceiro aspecto que podemos destacar é quanto às roupas e cabelos. Tanto Maputo quanto Luanda demonstram uma busca por parte das mulheres de uma ocidentalização, com o uso do jeans, ao invés dos trajes tradicionais, e os rapazes com estilo de rappers americanos, especialmente aqueles que tem mais recursos. Já as pessoas da área rural são mais tradicionais, sempre com destaque para o vestuário feminino, colorido e cheio de belas estampas, reforçando o uso das longas saias.

Com isso, a cultura tradicional torna-se mais fraca nos grandes centros, e mais forte na zona rural e interior. Isso também se aplica a aspectos polêmicos como a poligamia, a busca pelos curandeiros e as condições sanitárias tanto para manuseio dos alimentos quanto para a limpeza do corpo. Mas esse último é muitas vezes mais reflexo da precariedade de recursos e uma educação relativa à higiene (como acontece nas favelas do Brasil) do que o desejo de manter a cultura tradicional.

E assim caminha Angola, Moçambique, Brasil, Equador, e tantos outros lugares...

LER A BÍBLIA NA ÁFRICA

Ministrando curso em Moçambique, no Seminário Teológico de Cambine

Estudar a Bíblia em diálogo com a cultura africana é um desafio: já no Brasil vivemos nessa dinâmica, e muitas vezes temos que refletir com cuidado muitas questões. Não é diferente aqui, e o que torna isso especial é o fato de estarmos conhecendo a cultura moçambicana e angolana, ao mesmo tempo em que estamos expondo certas questões da Bíblia.

Falo em cultura africana porque, apesar de algumas diferenças, há muito em comum entre os grupos, e a convivência com eles no curso me permite perceber isso claramente. Angola tem aspectos mais ocidentalizados, inclusive pela influência direta do Brasil tanto na sociedade como um todo, quanto na Igreja em particular. Mas as tradições culturais remetem a grupos comuns, pois, como me foi dito pela Rev. Evalina, Superintendente Distristal de Luanda Sul, havia um único povo, mas que, por diversos fatores, acabou por lutar entre si e dividirem-se em grupos separados.

Essa separação se deve principalmente ao colonialismo português nessas nações, tema aliás que move a maioria das discussões. Falar em escravidão e dominação estrangeira aqui não coisa periférica: remete a pouco mais de 30 anos apenas, e que na memória das pessoas ainda está forte, bem como a guerra civil que se deu posteriormente, e que durou até 2003. Por isso, outro tema muito refletido aqui é o da reconciliação e da não violência, e uma teologia da "guerra espiritual" é no mínimo um contrasenso.
Grupo de estudo realizando atividade sobre a Bíblia

Agora alguns aspectos específicos: em Moçambique, percebi uma leitura neoplatônica do texto, em que a separação entre corpo e alma é muito evidente. Essa leitura acaba por entrar em choque com conceitos tradicionais da cultura local, tendo em vista que o pensamento africano não faz tal separação. O estudo da Bíblia numa visão integradora, como deve ser feita, foi uma grata surpresa para eles, que perceberam elementos da cultura local que não contrariam os princípios bíblicos.

Outro aspecto de Moçambique que foi um desafio é a questão do gênero: as relações homem e mulher aqui são ditadas pelo patriarcalismo indisfarçável. Em casais mais tradicionais, especialmente das zonas rurais, as mulheres vão na frente carregando todas as coisas (o equilíbrio delas carregando coisas na cabeça é digno de uma medalha), inclusive as crianças de colo, utilizando kapulanas amarradas de modo transversal. Ao homem, cabe ir mais atrás, meio que vigiando a mulher, e sem carregar nada. Os casais mais jovens mudaram um pouco isso; é bastante comum hoje ver um casal andando lado a lado, possível influência do contato com outras culturas. Tal realidade também está presente em Angola, nas regiões rurais.

Estudar a Bíblia pensando em gênero e família torna-se complexo; é bem verdade que a Igreja tem sido uma presença transformadora dessa realidade. Basta pensar que a Conferência de Moçambique elegeu uma bispa (aqui ela é chamada de bispo, pois cargo de poder só pode ser exercido por homem), e com todas as dificuldades ela tem conseguido transformar ainda mais esse processo. Deus lhe dê mais sabedoria a cada dia.

Ministrando o curso em Angola, na Universidade Metodista de Angola

Em Angola também o patriarcalismo é forte: somente as jovens gerações urbanas de mulheres têm conseguido ter uma vida profissional própria sem enfrentar todo tipo de resistência. Mesmo assim, permanece o desafio.

Para uma leitura bíblica contextualizada, os desafios de ambos são diferentes: Moçambique luta com a influência dos curandeiros (feiticeiros) da cultura tradicional, que têm imensa influência sobre as famílias, especialmente nas áreas rurais. Já os angolanos lutam com enorme influência de outros curandeiros, aqueles de denominações neopentecostais, com sua pregação da Teologia da Prosperidade, campo fértil especialmente na cidade de Luanda e arredores, além do grande tema da reconciliação, entre grupos políticos, religiosos e outros.

Por tudo isso,  o grande desafio é que moçambicanos e angolanos comecem a produzir reflexão bíblica a partir de sua realidade, de dentro, uma verdadeira leitura bíblica africana, com vistas a um projeto libertador, em diálogo com a realidade. Nesse sentido, o projeto SolAfrica pode contribuir enormemente, para que nossa relação com eles seja realmente de parceria e diálogo e não de dependência. Deus nos ajude nessa tarefa.